consulta com Betty Milan
SEM O MASOQUISTA, O SÁDICO NÃO TEM VEZ
Tenho 29 anos e minha irmã tem 22. Minha mãe tratava ela bem e me tratava mal. As duas sempre foram unidas e, com o tempo, eu fui pegando raiva delas.
A maioria das pessoas diz que minha irmã é muito mais bonita do que eu. Essa comparação também me deixa com raiva. Existe uma disputa entre nós. Sofro com isso. Primeiro, porque acho vergonhoso. Segundo, porque quero me sentir livre. Gostaria de não me sentir ameaçada pela minha própria irmã, só ter amor por ela.
Mas tudo se passa como se ela tivesse nascido para ser modelo, porque ela é mesmo bonita. Modelo ou patroa e eu empregada, faxineira. Não quero desmerecer estas duas profissões com a minha comparação e só estou enviando este e-mail a você por existir a garantia do anonimato.
Ao ler você, eu pensei na Cinderela, que é perseguida pela madrasta e pelas irmãs e relegada à faxina. O nome da heroína em francês, língua em que Charles Perrault escreveu o conto, é Cendrillon, que deriva de cendres, cinzas. Cendrilloné assim chamada porque ficava sentada num canto da chaminé, em cima das cinzas. No conto, como você sabe, graças a uma fada madrinha, Cinderela vai lindamente vestida a um baile onde ela encontra o príncipe com quem se casa. Trata-se de uma história triste que termina bem —e, como diz um provérbio francês, “tudo que termina bem é bom”.
O que fazer para que a sua história termine bem? Detendo-me no seu e-mail, vejo que a palavra raivase repete. Para se liberar, você tem que se livrar da paixão do ódio, à qual você se apega porque existe um gozo nesse apego. Um gozo masoquista.
Sua mãe foi injusta com você te tratando mal, e a natureza, que nunca é justa, também foi, dando mais beleza à sua irmã. Mas e daí? Vai ficar se remoendo porque sua mãe errou e você não é tão bonita, segundo os critérios da moda? Nem todo mundo nasceu para ser Gisele Bündchen e a beleza, através da qual ela chegou ao sucesso, está datada. A que dura a vida inteira é a beleza da alma, que você pode conquistar se livrando da paixão do ódio e da ignorância, duas paixões profundamente relacionadas.
No momento em que sair da posição em que você está, a sua relação com a sua irmã muda e automaticamente muda a que você tem com sua mãe. Ela não terá mais como se exercitar no sadismo (consciente ou inconsciente) de tratar uma das filhas mal. Porque, sem o masoquista, o sádico não tem vez.
A vida nos escapa, mas só até certo ponto. Nós temos a faculdade da inteligência para controlar o sentimento. E, quando não é possível encontrar a saída sozinho, a gente vai ao analista, que não tem vara de condão como a fada madrinha da Cinderela, porém ajuda a reorientar a vida.
Publicado em Quem ama escuta