consulta com Betty Milan
O CIÚME SE AUTOENGENDRA
Tenho uma enteada de 2 anos com quem convivi durante um ano. Me apeguei muito a ela. O problema é que a mãe, por ciúmes, inventou que meu marido e eu maltratamos a menina e a afastou de nós. Fez isso com ajuda da mãe do meu marido. Eu e ele sentimos falta da garota e não sabemos como agir.
A questão é delicada. Você está às voltas com o ciúme de duas mulheres, a ex-mulher do seu marido e a mãe dele. As duas não suportam a relação de vocês e se aliaram, impedindo o convívio com a menina. Vingança, claro.
Cervantes diz que o ciúme é o tirano do reino do amor. Trata-se de um sentimento que nasce da fabulação e compromete a racionalidade; se autoengendra e frequentemente se associa à vingança. O exemplo clássico é Otelo, personagem de uma das tragédias de Shakespeare. Obcecado pela ideia de que Desdêmona o trai, ele a mata e se mata depois. Quem lê a peça, se dá conta do caráter paranoico do sentimento de Otelo, que tem mais a ver com o amor-próprio do que propriamente com o amor e, por isso, tem um desfecho funesto: assassinato e suicídio. Todo amor tem algo de narcísico, o ciúme é narcisismo puro.
Você e o seu marido podem tentar convencer a ex-esposa e a avó a procederem de uma forma diferente da atual, porém é improvável que tenham sucesso. Porque o ciúme é uma forma de delírio e, contra ele, os argumentos da razão nada podem. Agora, pela lei, o pai da menina tem direito a visitas regulamentadas e a lei pode ser usada a fim de que ele conviva de novo com a filha. Não havendo acordo entre ele e a mãe, o direito de visita será estabelecido judicialmente, contra a vontade dela. Trata-se de um direito inalienável, que só é recusado quando o genitor faz um mal comprovado ao filho.
Vale a pena recorrer à lei não só porque você e o seu marido sentem falta da menina, mas ainda porque a ex-mulher, consciente ou inconscientemente, faz mal a ela. Ao privá-la do pai, impede que ele exerça a função paterna — de impor limites — e que a filha se beneficie disso. Noutras palavras, impede o pai de facilitar a aceitação da lei, tão necessária à vida quanto a realização do desejo.
O exercício da função paterna é fundamental no caso da sua enteada, porque a mãe faz pouco da lei, comporta-se mais como usurpadora do que mãe. Usurpa, nos vários sentidos do dicionário, ou seja: “apossando-se violentamente”, “adquirindo com fraude”, “alcançando sem direito” ou “exercendo indevidamente o poder”. Para simplificar, ela tomou a menina à força e é normal que vocês reajam, recorrendo a um advogado e exigindo o que é de direito. Quanto antes melhor.
Publicado em Quem ama escuta