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O amigo não trai

Quando adolescente, tive um namorado que eu julgava ser o amor da minha vida. Como eu tinha medo do sentimento exagerado, terminei o namoro algumas vezes, apesar de ser correspondida. Fui covardemente traída. Ele e minha melhor amiga saíram para uma sessão de sacanagem, cujos detalhes eu infelizmente fiquei sabendo. Como era muito jovem e não me permitia transar, a traição me afetou muito e eu tive uma depressão que durou anos.

Hoje, sou bem casada, não penso no assunto, mas volta e meia eu sonho com o ex-namorado. Sempre aparece em posição de superioridade, como alguém inatingível. Um fantasma que me ronda. Gostaria de entender isso. Por que eu me sinto inferiorizada assim? Por que eu acordo com medo de alguém que está tão distante? Como se o ex-namorado pudesse ainda me abandonar e me machucar.

Sei que me apaixonei pelo meu próprio sentimento, pelo meu amor…

 

 

O namoro é correspondido, mas você dá o fora no rapaz e ele dá o troco, te sacaneando com sua melhor amiga. Ou seja, você perde um namorado perverso e uma amiga que de amiga não tinha nada. Porém se deprime —e muito. Depois, sonha repetidamente com esse namorado que te abandonou e aparece no sonho como alguém inatingível, superior.

Como não pensar que ele está no lugar do seu pai? E que o triângulo constituído por você, pelo namorado e pela amiga está no lugar do triângulo constituído por você, pelo seu pai e pela sua mãe? Agora, a razão do sonho, você só pode conhecer através da interpretação dele, que implica a associação livre e pode ser feita numa análise.

Para entender melhor o que eu estou dizendo, recomendo a leitura de um dos grandes livros de Freud, A interpretação dos sonhos, datado de 1900. Contrariamente aos seus contemporâneos, ele valorizou as crenças antigas, considerando que a advinhação pela interpretação dos sonhos, oniromancia, tinha um fundamento de verdade. A partir daí, passou a estudar a vida onírica, apresentando os fatos que analisava com uma exatidão escrupulosa, exigindo de si mesmo o rigor próprio à ciência do seu tempo.

Graças ao estudo sistemático, Freud concluiu que o material do sonho propriamente dito— o conteúdo manifesto — não tem interesse; é constituído em geral por um conjunto incoerente de imagens insignificantes ou absurdas. O que conta é a significação implícita no conteúdo manifesto, o chamado “conteúdo latente”, ao qual só é possível ter acesso com uma chave apropriada. A chave que ele nos entregou com A interpretação do sonhos.

Você está às voltas com o conteúdo manifesto do seu sonho. Se quiser entendê-lo verdadeiramente, precisa passar para o conteúdo latente e isso implica fazer um trabalho consigo mesma. Um trabalho com o qual você só tem a ganhar. Quem se debruça sobre a própria história tem mais recursos para viver.

 

Publicado em Quem ama escuta