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A PIOR PAIXÃO É A DA IGNORÂNCIA

Você talvez possa me ajudar num problema que estou enfrentando atualmente. Tive um relacionamento casual com uma moça e ela teve um filho meu — gravidez não planejada. O garoto tem 2 anos. Assim que ele nasceu, na tentativa de formar uma família, fui morar com a mãe. Com o passar do tempo, percebi que estava infeliz e me separei. Hoje, moro como meus pais e me sinto bem.

Quando está comigo, meu filho fica alegre, feliz. Mas toda vez que eu levo o menino para a mãe, ele chora muito e se agarra em mim. Quando ela tira o menino dos meus braços, ele grita o meu nome e tenta escapar dos braços dela. Isso parte o meu coração e ela me diz que fica triste. Vejo a decepção no rosto dela. Acho que ela não o maltrata. Gostaria de descobrir por que o menino reage assim.

 

Li o seu e-mail e me lembrei do título de um conto que Mario de Andrade escreveu em 1926: Piá não sofre? Sofre, claro. Piá significa indiozinho ou caboclinho e o piá em questão sofria de fome. A ponto de comer terra — como muitas crianças brasileiras ainda hoje. Quase 100 anos depois.

O fato é que o seu filho está sofrendo. Talvez porque você não suporte se separar dele, como o seu texto indica: “Quando ela tira o menino dos meus braços, ele grita o meu nome e tenta escapar dos braços dela”. Você não usou os verbos tirar e escapar casualmente. É como se a mãe o arrancasse de você, à semelhança do que a polícia faz quando prende alguém. Você vive o ato dela como um ato de violência. Há, decerto, mais de uma razão para este sentimento, mas uma delas é a falta de confiança na mãe, que pode ser deduzida da frase: “Acho que ela não o maltrata”. A gente usa o verbo acharquando não tem certeza.

Enquanto você não resolver a sua situação com a mãe do seu filho, ele vai sofrer. Resolver significa o quê? Ter uma consciência nova da sua posição no triângulo infeliz que se formou. Saber por que você teve um filho indesejado, descobrir por que entrou nessa e assumir a responsabilidade pelos fatos. Depois, conversar com a mãe sobre a tentativa impossível de formar uma família e sobre a situação atual. Se você e a mãe souberem claramente onde e por que vocês tropeçaram, a situação pode mudar. Vocês estão separados hoje como estiveram juntos antes. Ou seja, sem uma consciência clara do que acontece.

Apesar de ter só 2 anos, o menino se dá conta disso. Só vai ficar bem quando a situação entre vocês e a posição de cada um em relação a ele for clara. A pior paixão é a da ignorância. Nós frequentemente sofremos por não querermos saber o que acontece — e o “não querer saber” é inclusive um conceito psicanalítico. Diz respeito ao modo como lidamos com o nosso inconsciente, a quão atentos ou surdos somos para ele. Quão recalcadas as suas manifestações ou quão bem acolhidas.

 

Publicado em Quem ama escuta